Cozinhar sempre fez parte da minha vida. Quando adulto me dei conta do quanto isso influenciou minhas escolhas profissionais e pessoais. Meu pai nasceu na Itália, em uma cidade chamada Bassano del Grapa, na região do Veneto. Engenheiro, veio para o Brasil de navio, sozinho e sem falar uma palavra de português. Conheceu minha mãe no Paraná. Casaram-se e eu nasci.
Família enxuta. Ambos tinham ligação forte com a comida. Bom, nem preciso explicar a relação com a comida que um italiano tem, ainda mais longe de “casa”. Sempre rodeado dos amigos e da pequena colônia, morávamos em uma cidade no interior do Rio de Janeiro e lá tínhamos uma fazenda de onde vinham as verduras, frutas e vários outros ingredientes locais. Muita massa caseira, molho de tomate, risoto, “porpeta” e muita carne. Sobremesa, no mínimo, duas por refeição. Lembro das minhas merendas da escola que os colegas ficavam de olho grande: sonhos! Detalhe: minha mãe fazia a massa e o recheio de doce de leite. Loucura! Essa parte dos doces eu prefiro até pular.
Foto do Henrique.
Naquela época o açúcar não era um vilão. Lutei bravamente para me livrar da dependência do paladar doce. No meio dessa comilança toda, havia uma coisa muito interessante que valorizo até hoje: tudo era muito natural e eu sempre comia muitas verduras e frutas que vinham da nossa fazenda. Já, na época, orgânicas. Minha mãe cozinhava com amor. Sentia isso, porque ela se dedicava e curtia fazer receitas caseiras e elaboradas, e as fazia recheadas com felicidade.
Lá em casa tínhamos uma dispensa, e embora a escala na minha imaginação fosse provavelmente menor, a imagem é bem presente. Várias prateleiras com vidros cheios de conservas coloridas de verduras, frutas e geleias. Normalmente, aos domingos, ficava com a missão de escolher a conserva para saborear durante a semana. Lá pelos meus oito anos, meu pai já aposentado, resolveu montar uma fabriqueta de massas para que o meu tio Bêpe, irmão mais novo dele, pudesse tocar o negócio. Não durou muito, mas me dei bem! Comia sempre massa caseira e brincava no meio dos sacos de farinha e das máquinas. Na mudança de cidade, com 12 anos, levei meu paladar já formado comigo. Estava tudo lá, o sabor das verduras, frutas, as receitas elaboradas e os ingredientes italianos.
Levei também, sem me dar conta, o desconforto que eu tinha com a imagem da carne no meu prato. Passava parte das férias na fazenda no Paraná, onde meus avós maternos moravam. Ficava chocado com a tranquilidade com que a minha avó quebrava, sem dó nem piedade, os pescoços das galinhas. Na minha imaginação, aquilo era cena de crime com fita amarela e tudo mais, isolando o local. Era bizarro, porque as galinhas tinham nomes, eu dava milho para elas de manhã e à noite as reencontrava boiando, em pedaços, num prato de canja.
Foto do Henrique.
Uma amiga de escola me convidou para almoçar na casa dela. Eu já tinha 16 anos. Quando cheguei lá descobri que os pais e ela eram vegetarianos!! Pronto, pensei, encontrei minha turma!! Até aquele momento não sabia que dava para ficar vivo sendo vegetariano. Por aproximadamente 30 anos fiquei sem comer peixes. Eventualmente, quando não há opção, como, mas cada vez menos. Experimentei muitas variações do tema: macrobiótica, comida crua, veganismo etc.. Mas foi em 1994, na minha primeira de muitas viagens à Índia que a comida para mim se transformou em “ALIMENTO”.
Percebi a relação direta desta escolha no meu corpo e na mente. Fiquei durante vários meses em um Asharam no interior do centro sul da Índia. Um lugar para meditação e para quem estivesse a fim de praticar serviços voluntários. É claro que escolhi a cozinha, mas às vezes ia para a horta. Várias pessoas, de diversos países, se revezavam para produzir três refeições vegetarianas diariamente para,
outras centenas e, quando havia festividades, para milhares de pessoas.
Cada vez que voltava à Índia, viajava um pouco pelo país. Acabei conhecendo de sul ao norte, até a base dos Himalaias. Comia na rua, em refeitórios tradicionais indianos, restaurantes badalados, casas de famílias locais e hotéis cinco estrelas. Aos poucos, fui aprendendo a amenizar e harmonizar o efeito das famosas especiarias no meu paladar. Comia com a mão direita na maior parte dos locais tradicionais. No início é uma quebra de paradigma e uma lambança. Fui dominando a técnica e essa simbiose com o alimento me fez perceber o quanto meu corpo reconhece e reage quimicamente ao que ingiro.
Taj Mahal – Agra -1998
Estava muito longe do Brasil, mas me sentia totalmente em casa devido à semelhança com o hábito indígena de comer com as mãos. Não apenas pelo contato físico com os ingredientes, mas pela sabedoria e o respeito com o rito, que envolve desde a preparação até a celebração em torno da alimentação. Fui me purificando. Só me alimentava estritamente da comida vegetariana, preparada por voluntários, de forma devocional, com ingredientes locais e sazonais. Acordava às 4h da manhã para meditar. Estabeleci um ritmo e comia pouco, em intervalos frequentes, e nas mesmas horas. Eliminei durante meses o açúcar, produtos industrializados, cafeína e tudo que meu corpo indicasse um sinal de desarmonia. Além de já estar bem e feliz, meu peso ainda reduziu e estabilizou.
A Índia formou definitivamente meu paladar e me nutriu de conhecimento sobre alimentação e saúde que funciona como minha referência de equilíbrio. Mas esse conhecimento é individual. Cada um deve descobrir o que lhe faz bem e o que o intoxica. Eu acho que a melhor forma é se observar, ter curiosidade e investigar as melhores opções alimentares ao seu alcance.
Quando me refiro ao alimento também o relaciono ao que é “ingerido” pelos outros sentidos: olfato, visão, audição e tato. A medicina tradicional indiana considera a comida como um canal de cura e manutenção do equilíbrio entre o físico, mental e espiritual. Estamos nos distanciando do contato com o alimento na sua forma natural. Principalmente se vivemos longe do campo ou da possibilidade de consumir alimentos frescos e orgânicos. A comida é tratada como um produto, industrializada e contaminada com “ingredientes” que a natureza não produz, como estabilizantes, corantes, aromas e etc. Essa comida, ao invés de, promover a saúde, está adoecendo o planeta.
Jaipur -2000
Mas existem diversas alternativas, experiências e pessoas muito bem intencionadas trabalhando para promover a manutenção desse equilíbrio, gerando novas alternativas para minimizar e/ou reverter essa relação artificial com a comida. Esse assunto me interessa muito e me move cada vez mais em direção a um futuro que projeto e tento construir no meu dia a dia. Acredito que o exemplo é a melhor forma de convencimento. Não me iludo mais achando que a mudança deva partir de cima para baixo, da esquerda ou da direita. Ela surge de dentro para fora e assim vai se expandindo. Surge do desejo interno de cada um, em se transformar na sua melhor versão possível.
Criei a consultoria Gabinete de Alimento para reforçar a minha empreitada individual e assim poder contribuir para o bem estar coletivo. Atualmente, seleciono os projetos que refletem a minha coerência. Acredito que as escolhas que fazemos sobre o que comemos, de onde vem e como é feito nosso alimento, têm consequências poderosas sobre a nossa saúde, a das comunidades e a da nossa grande Casa Azul.
Nota do Apezinho: Curtiu? Nós adoramos! A bela foto do Henrique e suas deliciosas massas foi tirada pelo Ariosto Amado. Temos um outro post que fala sobre temperos, que tem tudo a ver com o que o nosso amigo escreveu: Sem sal, com tempero.
2 Comentários
Fui aluna do Henrique no SENAC e absorvia tudo o que ele nos ensinava. Me identifiquei muito com o estilo de cozinhar e os valores dele ao ler esse texto. Assisti a filmes q ele indicou, fui a restaurantes q ele achava bacana. Mestre inspirador. Quem sabe um dia tenho a honra de trabalhar com ele?
Oi Geísa, que mensagem linda! Vamos enviá-la pra ele, temos certeza que ele vai adorar. Beijos carinhosos pra você!